quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Da mentira - Kant

A METÁFISICA DOS COSTUMES

A Doutrina dos Elementos da Ética

Capítulo II

O dever de um ser humano consigo mesmo meramente como um ser moral

Este dever se opõe aos vícios da mentira, avareza e falsa humildade (servilismo).

I - Da mentira

§ 9

A maior violação do dever de um ser humano consigo mesmo, considerando meramente como um ser moral (a humanidade em sua própria pessoa), é o contrário da veracidade, a mentira (alliud língua promptum, alliud pectore inclusum gerere)[1]. Na doutrina do direito, uma inverdade intencional é chamada de mentira somente se violar o direito de outrem; mas na ética, onde nenhuma autorização é derivada da inocuidade, fica claro de per si que nenhuma inverdade intencional na manifestação dos pensamentos de alguém pode eximir-se dessa áspera denominação, pois a desonra (sendo um objeto de desprezo moral) que acompanha uma mentira também acompanha um mentiroso, como sua sombra. A mentira pode ser externa (mendacium externum) ou, inclusive, interna. Através de uma mentira externa um ser humano faz de si mesmo um objeto de desprezo aos olhos dos outros; através de uma mentira interna ele realiza o que é ainda pior: torna a si mesmo desprezível aos seus próprios olhos e viola a dignidade da humanidade em sua própria pessoa. E, assim, uma vez que o dano que pode atingir outros a partir da mentira não é o que distingue esse vício (pois se fosse, o vício consistiria apenas em violar o dever de cada um para com os outros), este dano não é considerado aqui. Tampouco é o dano que um mentiroso causa a si mesmo, pois então uma mentira, como um mero erro em matéria de prudência, entraria em conflito com a máxima pragmática, não com a máxima moral, e não poderia ser considerada de modo algum uma violação do dever. Pela mentira um ser humano descarta e, por assim dizer, aniquila sua dignidade como ser humano. Um ser humano que não crê ele próprio no que diz a outro (mesmo que o outro seja uma pessoa simplesmente ideal) tem mesmo menos valor do que se fosse uma mera coisa; pois uma coisa, por ser algo real e dado, possui a propriedade de ser útil, de maneira que um outro pode destiná-la a algum uso. Mas a comunicação dos próprios pensamentos a alguém através de palavras que, entretanto (intencionalmente), contém o contrário daquilo que pensa o discursador sobre o assunto, constitui um fim diretamente oposto ao natural propósito da faculdade do discursador de comunicar seus pensamentos, e, constitui, assim, uma renúncia da parte do discursador à sua personalidade, e um tal discursador é uma mera aparência enganosa de um ser humano, não um ser humano ele próprio. A veracidade nas nossas declarações é também chamada de honestidade e, se as declarações constituem promessas, sinceridade; mas, mais geralmente, a veracidade é chamada de retidão.

A mentira (no sentido ético da palavra), a inverdade intencional em geral, não necessita ser prejudicial aos outros para ser repudiada, pois seria então uma violação dos direitos dos outros. É possível que seja praticada meramente por frivolidade ou mesmo por bondade; aquele que fala pode, até mesmo, pretender atingir um fim realmente benéfico por meio dela. Mas esta maneira de perseguir este fim é, por sua simples forma, um crime de um ser humano contra sua própria pessoa e uma indignidade que deve torná-lo desprezível aos seus próprios olhos.

É fácil demonstrar que o ser humano é efetivamente culpado de muitas mentiras internas; porém, parece mais difícil explicar como são possíveis, pois uma mentira requer uma segunda pessoa que se pretende enganar, ao passo que enganar a si mesmo propositalmente parece encerrar uma contradição.

O ser humano, como ser moral (homo noumenon), não pode utilizar a si mesmo como um ser natural (homo phaenomenon) na qualidade de mero meio (uma máquina falante), como se seu ser natural não estivesse vinculado ao fim interior (de comunicar pensamentos), mas está vinculado à condição de utilizar a si mesmo como um ser natural em acordo com a declaração (declaratio) de seu ser moral e se encontra obrigado para consigo mesmo à veracidade. Alguém diz uma mentira interna, por exemplo, se professa a crença num futuro juiz do mundo, embora não descubra realmente tal crença no seu íntimo, mas persuade a si mesmo que não faria mal algum e poderia ser, até, útil professar em seus pensamentos a alguém que sonda corações uma crença em tal juiz, a fim de conquistar seu favorecimento, caso devesse ele existir. Alguém também mente se, não tendo qualquer dúvida sobre a existência desse futuro juiz, ainda assim lisonjeia a si mesmo de que intimamente reverencia sua lei, embora o único estímulo que experimenta seja o medo da punição.

A insinceridade é mera falta de exclupulosidade, isto é, de pureza que professamos ante o nosso juiz anterior, que é concebido como uma outra pessoa quando a esclupulosidade é tomada com absoluto rigor; então, se alguém, a partir do amor próprio, toma um desejo pela ação porque tem um fim realmente benéfico em mente, sua mentira externa, embora seja efetivamente contrária ao seu dever pra consigo mesmo, ganha o nome de fraqueza, como quando o desejo de um amante de encontrar apenas boas qualidades na sua amada o deixa cego para os óbvios defeitos dela. Mas tal insinceridade em suas declarações, que um ser humano perpetua sobre si mesmo, ainda merece a mais severa censura, uma vez que provem de mácula tão objeta (a falsidade, que parece estar arraigada na própria natureza humana) que o mal da inveracidade[2] se dissemina em suas relações com outros seres humanos também, posto que o mais elevado princípio da veracidade foi violado.

Observação

É de se notar que a Bíblia situa o primeiro crime, através do qual o mal ingressou no mundo, não a partir do fratricídio (de Caim) mas a partir da primeira mentira (pois até mesmo a natureza ser ergue contra o fratricídio) e classifica o autor de todo o mal como um mentiroso desde o início e como o pai das mentiras. Entretanto, a razão pode atribuir nenhum outro fundamento à propensão humana para a hiprocrisia (sprit fourbe), embora essa propensão deva ter estado presente antes da mentira, pois um ato de liberdade não pode (como um efeito natural) ser deduzido e explicado de acordo com a lei natural da conexão dos seus efeitos com suas causas, todas as quais são aparências.

Questões casuísticas

Pode uma inverdade por mera delicadeza (por exemplo “teu obediente servo” no fim de uma carta) ser considerada uma mentira? Ninguém é enganado por isso. Um autor pergunta a um de seus leitores: “O que achou de minha obra?” Poderia parecer meramente que se dar uma resposta gracejando quanto a improbidade de uma tal pergunta. Mas quem tem seu dito espirituoso sempre pronto? O autor considerará a menor hesitação para responder, um insulto. Pode, então, alguém dizer o que dele se espera?

Se digo alguma coisa não verdadeira em assunto mais sérios, relacionadas com o que é meu ou teu, terei que responder por todas as conseqüências que poderia ter? Por exemplo, um dono de casa ordena ao seu criado que diga “ele não está em casa”, se um certo indivíduo perguntar por ele. O criado assim procede e, como resultado seu senhor sai furtivamente de casa e comete um grave crime que, de outra maneira, teria sido impedido pelo policial enviado para prendê-lo. Quem (de acordo com princípios éticos) é culpado neste caso? Certamente também o criado, que violou o dever para consigo mesmo por meio da sua mentira, cujos resultados sua própria consciência lhes imputa.

Kant, Immanuel, 1724-1804

A metafísica dos costumes / Immanuel Kant / tradução textos adicionais e notas Edson Bini / Bauru, SP : EDIPRO, 2003 (Série Clássicos Edipro)

Título Original: Die Metaphysik der Sitten

Esta tradução foi baseada na edição alemã de 1977, da Suhrkamp Verlag (que corresponde à edição de 1956 de Insel-Verlag, Wiesbaden). Estas edições, por sua vez, se reportam diretamente às edições de 1797 e 1798 (para a Doutrina do Direito) e exclusivamente à edição original de 1797 (para a Doutrina da Virtude).



[1] Kan cita Salustio (Guerra contra Catilina): ter uma coisa calada no coração e uma outra pronta na lingua. (n.t.)

[2] A idéia é a mesma de falsidade, mentira, mas Kant utiliza o termo negativo. (unwahrhafpigkeit). (n.t.)

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado por intiresnuyu iformatsiyu