quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Resenha Crítica sobre Introdução ao Direito Internacional

RESENHA CRÍTICA

AKEHURST, Michael. Introdução ao Direito Internacional: É o Direito Internacional Verdadeiramente Direito. S/l, : Medina., S/D, págs 1 a 11

O autor do texto nos convida a uma reflexão sobre a possibilidade de ser ou não o Direito Internacional um Direito. Inicia o texto expondo um conceito mais preciso sobre o Direito Internacional que também pode conhecido sob a designação de Direito Internacional Publico ou Direito das Nações. Segundo ele, “é o ordenamento jurídico que regula as relações entre Estados”. No entanto, o autor afirma que existe a crença generalizada de que o Direito Internacional não é na realidade um sistema jurídico e sim um orientador das relações no cenário internacional baseado em valores costumeiros e históricos, no entanto não formando um conjunto específico de regras positivas válidas para todos os Estados.

Afirma ele que “os Estados aceitam a natureza jurídica do Direito Internacional e, em regra, obedecem-lhe, mas, por vezes, acabam por infringi-lo, porém estas infrações não oferecem critério de julgamento único e não é exclusividade do Direito Internacional, pois as violações podem ocorrer em qualquer outro ordenamento jurídico,

Segundo a análise do autor, o Direito Internacional não proporciona resposta a todos os conflitos internacionais. Oportuno mencionar alguns fatores suscetíveis de produzir disputas a nível internacional:

1- Pode existir uma dúvida genuína relativamente aos fatos que exigirão mais clareza de entendimento.

2 – Pode existir uma incerteza relativamente ao Direito vigente, pois pode mudar o foco dependendo do território e da cultura.

3 - Um diferendo internacional pode resultar de uma pretensão à modificação do Direito existente.

4 – A origem de um litígio internacional pode encontrar-se num ato pouco amistoso, mas, no entanto lícito. Assim sendo, nem sempre uma contenda internacional fere direitos.

5 – É possível uma questão internacional surgir da violação de um corpo de regras não pertencentes ao Direito Internacional. O que necessitará de cautela para análise e composição dos fatos e dos diversos direitos infringidos e se essa infração fere substancialmente o sistema como um todo.

O autor nos sugere que “Só há uma maneira de distinguir o Direito Internacional das regras jurídicas não aplicáveis às relações internacionais. Estabelecendo uma questão de fundo: “Atribuem ou não os Estados a esta regra específica o caráter de norma de Direito Internacional?” Esta pergunta, para ele deve obter resposta, pois dela derivam duas conseqüências significativas. Em primeiro lugar quando uma regra não jurídica se converte numa norma de caráter jurídico, adquire um vigor que nunca antes possuiu. Em segundo lugar, quando uma regra não jurídica se converte em norma jurídica, os argumentos sobre o seu alcance adquirem um novo caráter.

Outra questão também importante para o entendimento do problema é se existe um sistema de elaboração, controle e aplicação das normas e sanções. De forma esclarecedora, o autor do texto evidencia que “estamos habituados a observar no Estado moderno o estabelecimento das leis por parte de um poder legislativo, enquanto o poder judicial examina as violações do direito, e um executivo, entre outras tarefas, aplica as decisões do legislativo e do judicial, no entanto, este sistema é praticamente desconhecido do Direito Internacional”.

A questão de peso não é negar o caráter jurídico do Direito Internacional, pois de algum forma ele existe, costumeiramente ou não, o mais importante é a análise sobre a falta de sanções, na falta de um procedimento judicial obrigatório como forma de resolução de conflitos. Ai se percebe o problema maior para o Direito Internacional.

O argumento principal do autor é: “se um Estado pratica um ato ilícito contra outro e se recusa a efetuar uma reparação ou a comparecer perante um tribunal internacional, só há uma sanção possível a acionar por parte do lesado: a autodefesa”. No texto fica evidente a enumeração de dois tipos de autodefesa: A retorsão e as represálias.

O autor defini as duas da seguinte forma: “a retorsão é um ato lícito destinado a prejudicar um Estado que haja cometido qualquer ato ilícito, interromper a ajuda econômica. As represálias são atos que normalmente seriam considerados ilegais, mas que se tornam lícitos em virtude de cometimento de um ato ilegal anterior por parte de outro Estado. Tanto a retorsão como as represálias oferecem a desvantagem, pois os Estados que as impõem pode vir a prejudicar-se tanto como aquele contra quem são dirigidas”. Não é, portanto de surpreender que se tenha vindo a manifestar recentemente uma tendência para a imposição de sanções por parte de largos grupos de Estados, atuando através de organizações internacionais como as Nações Unidas. Mas o Conselho de Segurança das Nações Unidas só pode impor sanções em circunstâncias limitadas. Portanto, em virtude das sanções terem limites e ao praticá-las os Estados ou os organismos internacionais podem acabar sofrendo com o próprio veneno, tudo isso dificulta um processo claro de cooperação legal institucional entre os povos, o que nos da uma falsa idéia de que o Direito Internacional não seja Direito.

O autor enumera algumas frentes para entendermos ser o Direito Internacional Direito ou não. Para ele, existem razões pelas quais os estados obedecem ao Direito Internacional e analisando estas razões, poderemos compreender melhor a temática central desta resenha:

1 – A inexistência de um poder legislativo constitui paradoxalmente um elemento que reforça o Direito Internacional. A falta de um poder legislativo em Direito Internacional significa que os Estados constroem em larga medida o direito para si mesmo. Em muitos aspectos, os Estados são naturalmente interdependentes e o Direito Internacional facilita a cooperação entre eles. O fato de o Direito Internacional em larga medida refletir os interesses dos Estados, não justifica a conclusão de que estes se comportariam da mesma maneira. O simples fato de uma regra pertencer ao Direito Internacional fornece aos Estados razões para o seu cumprimento, mesmo que pareça haver lucros a retirar em curto prazo do seu não cumprimento. Uma regra adquire vida própria quando se converte em norma de Direito Internacional.

2- O Direito Internacional baseia-se em larga medida no costume. Um Estado que viole uma norma de Direito Consuetudinário, pode vir a descobrir que criou um precedente que pode ser usado contra ele próprio, não pela vítima original, mas também por terceiros. A consciência de tal possibilidade impede, com freqüência, os Estados de violar o Direito Internacional.

Dois argumentos que favorecem a compreensão que nos leva a crê na possibilidade concreta de ser o Direito Internacional um Direito é que as argumentações contrárias utilizadas são frágéis, vejamos exemplos:

a) quando os Estados violam uma norma de Direito Internacional, tentam frequentemente justificar a sua conduta sugerindo ser ela uma pequena exceção à norma original.

b) um Estado pode deliberadamente tentar enfraquecer uma norma se ela, de modo geral, operar contra os seus interesses. Pode tornar-se difícil o enfraquecimento de uma determinada regra sem o enfraquecer o direito no seu conjunto.

3- os Estados são numericamente escassos e baseiam-se num território. Como o Estado se apóia num território, não pode escolher os seus vizinhos e está, portanto, obrigado a conviver com os mais próximos. Os Estados não podem mudar de um continente para outro.

Por fim, podemos então concluir que há uma celeuma forte sobre o tema, mas não nos leva a crer ou mesmo a aceitar a tendência de que o Direito Internacional não seja Direto, pois o mesmo tem sua fontes em mecanismos históricos, morais e costumeiros, sua perspectiva de atuação aceita por todos aqueles que desejam minimizar conflitos e preservar interesses mais amplos, mesmo que não concordando na integra. Suas bases estão pautadas numa licitude ampliada por valores universais.

Karl Jaspers e situações-limite. Autor: Jairo Garcia

Ao participar da disciplina Ética do II Curso de Especialização em Filosofia da Universidade de Brasília em 2006, no qual foram apresentados diversos pensadores e entre estes, o filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969) e sua ótica filosófica sobre a existência, baseada, entre outros conceitos, em “situações-limite”, surgindoneste contexto um interesse real pelo tema. Surgiu assim o desejo de auxiliar de alguma forma para o esclarecimento e melhor entendimento de como o autor compreende o que ele mesmo define como situações-limite, assim como explorar a sua relevância para a filosofia e demais conhecimentos.

Pode-se apreender que o ser humano vive hoje em uma época de sensação de instabilidade e mudanças aceleradas, muitas vezes não refletidas e/ou não criticadas. O homem experimenta uma época, em diversos setores, de grande relativização e efemeridade de ideais, de valores éticos, de fundamentos culturais e da defesa da integridade humana.

O ser humano está absorto querendo mais e melhor mobilidade, rompimento de barreiras e fronteiras, querendo cada vez mais tecnologia e avanços bio-tecnológicos, o que o faz quase um senhor e escravo de si mesmo, manipulando num terreno incerto e complexo que é a existência e sendo manipulado por vezes. Além disso, o homem não quer abrir mão do sensacionalismo do novo, da curiosidade frente às novidades fugazes.

O ser humano está impactado com a era do desenvolvimento, avanços e destruição acelerados, via tecnicismo informatizado, da reificação de si e do outro, do cientificismo exacerbado. Vive-se a era de uma luta inconsciente, não clarificada, uma era dominada por tendências pragmáticas e utilitaristas em prol do avanço de uns em detrimento de outros.

Karl Jaspers, em seu livro Iniciação Filosófica, se empenha em pensar a atualidade. Afirma que vivenciamos uma época de “auto-esquecimento (...) fomentado pelo mundo da técnica. Pautado pelo cronômetro, dividido em trabalhos absorventes ou esgotantes que cada vez mais leva o homem a sentir-se peça imóvel e substituível”. Ainda sobre isto, afirma que “o pendor para o auto-esquecimento é inerente à condição humana e o homem precisa de se arrancar a si próprio para não se perder (...) em irrefletidas trivialidades e rotinas fixas” e oferece ao homem o caminho da orientação filosófica como um despertar, um reencontro rumo a sua origem e a si mesmo.

É nesta ótica que Jaspers interpreta a situação humana como “ausência de garantia de tudo que está no mundo. (...) Constantemente ameaçado, por vezes malogramos totalmente, não podendo abolir o envelhecimento, a doença e a morte” . A existência é compreendida como um conglomerado de situações que são limitadoras do homem o qual se compreende conscientemente e historicamente situado, entre estas as chamadas situações-limite.

Jaspers afirma que estas situações-limite, são aquelas situações que constituem nosso viver, ou seja, situações sem as quais não se pode viver como: lutar, sofrer, acaso, se culpar e morrer. Estas não se transformam a não ser nos “modos” em que se manifestam. Usa a metáfora do “muro”, para falar delas, pois as apreende como barreiras, com as quais nos deparamos e ante as quais experimentamos o fracasso: as situações-limite não podem ser satisfatoriamente explicadas, dominadas e nem transformadas, somente esclarecidas.

Jaspers teve como centro de sua reflexão e discurso filosófico o ser-no-mundo como ser-em-situação. Situação cujo sentido está ligado aos temas que giram em torno da existência humana: historicidade, temporalidade, liberdade, finitude, sofrimento, fracasso, morte e Transcendência. Da existência, só podemos ter índices, como exemplo, a liberdade, a comunicação e a historicidade, que são indicadores irreversíveis e da Transcendência, só podemos ter cifras, que encontramos, “lemos” e “ouvimos”. As situações-limite carregam esta dupla evidência: evidência da existência e, de outro lado, da inefabilidade pela qual se anuncia a transcendência. Elas nos remetem à nossa condição humana.

Assim, pode-se compreender que a existência não é um valor, nem um estado. É, antes, inquietude, liberdade, comunicação, historicidade, um movimento fundamental do eu em direção a si-mesmo, do eu em direção ao outro(s). O pensamento, por seu lado, só tem sentido na fidelidade autêntica a essa existência que está, no seu âmago, vinculada à transcendência.

Hoje, pós-derrocada dos ideais utópicos positivos baseados apenas no progresso científico, num período obscuro e após duas grandes guerras, genocídios e massacre da própria espécie, experienciaria o homem contemporâneo uma dimensão de finitude, de pequenez? Será que este se percebe lançado num mundo no qual a capacidade de escolher, de tomar decisão fica dilacerada por situações problemáticas e absurdas? Reconhece sua condição humana? Percebe-se lançado num conjunto de situações limitadoras do seu agir e decidir? E essas podem ser compreendidas, transformadas, esclarecidas? Se puderem ser esclarecidas, como entender o esclarecimento através do que Jaspers chama de “orientação filosófica de mundo” facilitadora do caminhar do homem frente a sua existência?

No seu conjunto, a obra Jaspers apresenta-se, pela sua autenticidade e pela sua humanidade, como uma chave de entendimento para as várias oscilações do ser-no-mundo enquanto projeto existencial.

NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA

NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA

Muitos tem afirmado que Nietzsche não teve uma preocupação política, que não é um pensador político e o vê somente como um filósofo que coloca em xeque a tradição, seja ela metafísica, religiosa, romântica ou de classes. No entanto, desde as primeiras décadas do século passado é possível pensar em um projeto sócio-político baseado em novos conceitos através da análise seus de fragmentos póstumos via grandes pensadores como Gilles Deleuze e Gatarri, Oswaldo Giacoia, Carlos Henrique de Escobar, Henning Ottmann, Keith-Pearson, entre outros.

Nesta perspectiva nada simples, a política não pode ser tomada como um problema marginal, mas como um precioso fio de Ariadne que nos propiciará irmos em direção à transvaloração de todos os valores. Assim, Nietzsche critica a tradição filosófica grega (na figura de Sócrates, Platão e Aristóteles), o cristianismo (neo-platonismo de massa) e a modernidade política, entre este Kant defensor da moral do dever e de uma harmonia universal consciente. Vê no pensamento nômade e na tragédia grega o seu escopo de análise. Remete seu pensamento à época grega antes do advento da filosofia racional continental, fase da elevação dos chamados aristós: os melhores. Lá na fase trágica, mítica e, posterior, denominada pré-socrática está a base para se pensar nos fundamentos da política. È, em especial, nos pré-socráticos que tem-se a unidade complexa de pensamento e vida e que foi desvalorizada pelos seus contemporâneos. A base está nos acontecimentos, pensamentos, feitos e concepções anteriores ao advento da Filosofia pós-socrática (período de filósofos decadentes, anti-políticos e sofísticos).

Para ele somos multiplicidade e não equivocadamente, como quer a tradição política, a igualdade democrática (calçada numa filosofia ideal grega e num liberalismo burguês cristão) que é a nivelação dos fracos por baixo. Tese esta de dominação e de violência que suprimi a diferença, rebaixando o Homem a homens executáveis, maquináveis, reduzido-os a meros consumidores utilitários do ideal de felicidade, conforto, segurança e bem-estar, defendendo a compaixão como modelo base. Para o Nietzsche, no entanto, a compaixão traz a fraqueza e o esquecimento da dimensão de si e do outro, o enfraquecimento do Homem e a conseqüente banalização da existência. A humanidade perde a sua dimensão de grandeza e singularidade para condenar-se á mediocridade anônima do rebanho uniforme de anões hedonistas e autocomplacentes com vontade de poder recalcada. Chama a este movimento nivelador de reificação. Defende que a humanidade não se destrua em tal governo castrador de potencialidades e oferece como contraposto um conhecimento da cultura que até agora não foi atingido.

O chamado projeto da “Grande política” é baseada no contra senso, no contra movimento, na disputa entre ser e devir, triunfante sobre a tendência dominante e degenerativa denominada pequena política. É um programa filosófico que deseja propor a vitalidade da exceção contra a regra, criadora e deliberadora. Visa discutir a possibilidade da experiência das condições propicias para o surgimento de uma nova aristocracia do espírito, de uma raça mais forte, forte em vontade, responsabilidade, certeza de si mesmo, e tendo poder de instituir metas. Defende a metáfora do médico, do artista e do legislador como novos e autênticos valores. A “Grande Política” é um termo que deve ser entendido provisoriamente como alargamento de sentido e horizonte para a natureza da questão política. Defende a necessidade de trazer ao “dia” um tipo de ser humano mais vigoroso, que alegoricamente pode ser entendido como o Além-homem, um homem sintético, somatório, justificador que tem na maquinação anterior seu aporte para reinvertar-se como forma superior de ser.

Urge um novo questionar sobre a humanidade, um novo pra que? Isto nos levará a pensar numa inusitada percepção de grandeza, de individualidade, de liberdade como base de desenvolvimento positivo. Faz-se necessário despertar pensadores engajados, comprometidos com este ideário de futuro, espíritos livres, fortes e originários, reveladores de antagonismos e possibilitadores de transvaloração de valores “eternos”, tendo como dever último tomar nas mãos ferramentas (martelo e cinzel) que possam delinear um novo porvir de autodeterminação. O isolamento, o esforço de preservação de si próprio, o egoísmo virtuoso são meios de cultivo desta grande individualidade.

È o projeto de uma raça afirmadora, uma nova aristocracia de espírito, uma raça com esfera vital própria, bela, corajosa, com força cultural e espiritual. O caminho é da auto-superação, do elevar-se , ascender-se. Raça esta superior com a mente instruída, desenvolto na sua corporaneidade, tendo a si como referencial e que goze a inteireza de sua natureza. Este é o ser da afirmação e não o da negação, este é o homem dionisíaco que se mantem e sabe apenas dançar e ser palhaço frente ao abismo, carregando a força cultural acumulada e assumindo como dever a legislação da tábua de novos valores. É o projeto do inventor de novos capítulos no drama do destino da alma.

Neste projeto-conceito não existe consolo ou justificação metafísica, científica ou ética para a existência o que há é a possibilidade de auto-determinação do homem. Este novo homem busca a conquista de mais vida e esta é tida como vontade de potencia ativa que cria e vive e ao adquirir mais vida doa em abundancia, sem comercializar.

Nietzsche não visa ser um autor de sistema, um recodificador, construtor de códigos, regras, manual, mas busca, com este projeto-conceito, estabelecer uma decoficação em absoluto e, em seguida, oferecer uma reterritorialização, uma nova cartografia. Fala em uma cultura integradora da sexualidade (desejo), do impulso, do afeto, do que emerge, pensando a partir da pluralidade e não do sujeito, porém possibilitando a realização de cada um. Afirma ainda que antes de sermos políticos com o outro (macro-política) temos que ser político conosco, produzirmos a nos mesmos, sendo simultaneamente, criatura e criador e que sabe piscar os olhos quando enxerga a felicidade.

Pode-se perceber que Nietzsche não escreve com flores, mas com fluxos de vida, com vitalidade, visando o alastramento de uma nova mentalidade transformadora e contínua perante esta existência que perdeu o sentido, absurda.

AÇÃO POLÍTICA EM HANNAH ARENDT

AÇÃO POLÍTICA EM HANNAH ARENDT

Hannah Arendt destacou-se por ser sensível à crise de valores, à erosão dos espaços públicos, à domesticação das massas pelas artimanhas do capital e pelas ilusões consumistas, à destruição da cultura política e do culto aos valores públicos e comuns, à perseguição anti-semita e à castração da liberdade. Sua filosofia política não aponta para a inação, e sim distingue, no horizonte, os germens da esperança decorrentes do renascer contínuo da política pelas possibilidades abertas pela condição de natalidade.

Diferente do que vinha sendo pensado e buscado até então pela Filosofia, Hanna Arendt vai se interessar por quem é o ser humano e não o que é o ser humano ou o Ser, pois pensar em política é pensar em questões humanas e não em questões metafísicas. Uma de suas preocupações é perguntar se o homem se desenvolveu com o avanço tecnológico? Segundo ela não, tudo tem ofuscado o agir humano, isto é tem colaborado para o esquecimento da ação, o homem age, mas não tem vida activa. Segundo ela, o conceito de política se perdeu, ficou esquecida e busca resgatá-lo, busca chamar a atenção para o problema da ação.

Á vida entendida como labor não cria, não produz nada, nem a política, ela é regulada por necessidade metabólica visando preservação da espécie. Essa atividade não deixa resultados e se consome e se encerra em si mesma. Só torna a vida mais fácil e mais longa, sendo a atividade elementar do homem entendido como Animal Laborans.

No ser humano há a dimensão de mundanidade que implica em, além de outras atividades, transformar o que é natural em algo útil, em mundo, no entanto, este mundo artificial também o condiciona, isto é, o mundo fabricado pelo homem pode se voltar para ele o condicionando como sistema de valor e é esta a atividade do Homo faber (homo poiéticos). A vida entendida como Work (trabalho, ato de fabricar, obra) é a busca do ser humano mortal tendendo a sua imortalidade via trabalho, como produtor de cultura que tenha durabilidade para além da vida humana, tornando o mundo mais útil e mais belo, no entanto, para Arendt, só podemos falar em política, em atividade política quando pressupomos a vida como vida activa, uma vida fundada na práxis, na ação. Pela ação, entendida como pluralidade, é possível a convivência no mundo visto como espaço público que ao mesmo tempo separa e reuni.

A ação surge na pluralidade e não é necessária e nem útil e está vinculada à natalidade. A ação nasce deste encontro e o ser humano decide em buscar a imortalidade e não só a necessidade e utilidade. Toda ação tem de ser imprevisível, pois não é fabricação, não tem um fim a ser alcançado como o imaginado. Imprevisibilidade e irreversibilidade têm de está como base de entendimento sobre política, pois só o ser humano é dotado de poder de linguagem sendo capaz de prometer e perdoar e assim ele é um ser político antes de ser social. A política não é um artefato, ela é atividade que gera poder na pluralidade consensual. A ação só pode se dar via discurso que leva o ser humano a agir e a se revelar, se percebendo como agente (ativo) e não como ator.

Ação, liberdade e política são coisas entremeadas num único nó de sentido que faz com que quando se vê um desses elementos afetados, os demais passam a sofrer por sua restrição, assim a liberdade está condicionada pela ação. Os homens só são livres enquanto agem, pois agir e ser livre são a mesma coisa. Ser capaz de ação e ser capaz de criar são coisas coincidentes.

Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 15-20

Da mentira - Kant

A METÁFISICA DOS COSTUMES

A Doutrina dos Elementos da Ética

Capítulo II

O dever de um ser humano consigo mesmo meramente como um ser moral

Este dever se opõe aos vícios da mentira, avareza e falsa humildade (servilismo).

I - Da mentira

§ 9

A maior violação do dever de um ser humano consigo mesmo, considerando meramente como um ser moral (a humanidade em sua própria pessoa), é o contrário da veracidade, a mentira (alliud língua promptum, alliud pectore inclusum gerere)[1]. Na doutrina do direito, uma inverdade intencional é chamada de mentira somente se violar o direito de outrem; mas na ética, onde nenhuma autorização é derivada da inocuidade, fica claro de per si que nenhuma inverdade intencional na manifestação dos pensamentos de alguém pode eximir-se dessa áspera denominação, pois a desonra (sendo um objeto de desprezo moral) que acompanha uma mentira também acompanha um mentiroso, como sua sombra. A mentira pode ser externa (mendacium externum) ou, inclusive, interna. Através de uma mentira externa um ser humano faz de si mesmo um objeto de desprezo aos olhos dos outros; através de uma mentira interna ele realiza o que é ainda pior: torna a si mesmo desprezível aos seus próprios olhos e viola a dignidade da humanidade em sua própria pessoa. E, assim, uma vez que o dano que pode atingir outros a partir da mentira não é o que distingue esse vício (pois se fosse, o vício consistiria apenas em violar o dever de cada um para com os outros), este dano não é considerado aqui. Tampouco é o dano que um mentiroso causa a si mesmo, pois então uma mentira, como um mero erro em matéria de prudência, entraria em conflito com a máxima pragmática, não com a máxima moral, e não poderia ser considerada de modo algum uma violação do dever. Pela mentira um ser humano descarta e, por assim dizer, aniquila sua dignidade como ser humano. Um ser humano que não crê ele próprio no que diz a outro (mesmo que o outro seja uma pessoa simplesmente ideal) tem mesmo menos valor do que se fosse uma mera coisa; pois uma coisa, por ser algo real e dado, possui a propriedade de ser útil, de maneira que um outro pode destiná-la a algum uso. Mas a comunicação dos próprios pensamentos a alguém através de palavras que, entretanto (intencionalmente), contém o contrário daquilo que pensa o discursador sobre o assunto, constitui um fim diretamente oposto ao natural propósito da faculdade do discursador de comunicar seus pensamentos, e, constitui, assim, uma renúncia da parte do discursador à sua personalidade, e um tal discursador é uma mera aparência enganosa de um ser humano, não um ser humano ele próprio. A veracidade nas nossas declarações é também chamada de honestidade e, se as declarações constituem promessas, sinceridade; mas, mais geralmente, a veracidade é chamada de retidão.

A mentira (no sentido ético da palavra), a inverdade intencional em geral, não necessita ser prejudicial aos outros para ser repudiada, pois seria então uma violação dos direitos dos outros. É possível que seja praticada meramente por frivolidade ou mesmo por bondade; aquele que fala pode, até mesmo, pretender atingir um fim realmente benéfico por meio dela. Mas esta maneira de perseguir este fim é, por sua simples forma, um crime de um ser humano contra sua própria pessoa e uma indignidade que deve torná-lo desprezível aos seus próprios olhos.

É fácil demonstrar que o ser humano é efetivamente culpado de muitas mentiras internas; porém, parece mais difícil explicar como são possíveis, pois uma mentira requer uma segunda pessoa que se pretende enganar, ao passo que enganar a si mesmo propositalmente parece encerrar uma contradição.

O ser humano, como ser moral (homo noumenon), não pode utilizar a si mesmo como um ser natural (homo phaenomenon) na qualidade de mero meio (uma máquina falante), como se seu ser natural não estivesse vinculado ao fim interior (de comunicar pensamentos), mas está vinculado à condição de utilizar a si mesmo como um ser natural em acordo com a declaração (declaratio) de seu ser moral e se encontra obrigado para consigo mesmo à veracidade. Alguém diz uma mentira interna, por exemplo, se professa a crença num futuro juiz do mundo, embora não descubra realmente tal crença no seu íntimo, mas persuade a si mesmo que não faria mal algum e poderia ser, até, útil professar em seus pensamentos a alguém que sonda corações uma crença em tal juiz, a fim de conquistar seu favorecimento, caso devesse ele existir. Alguém também mente se, não tendo qualquer dúvida sobre a existência desse futuro juiz, ainda assim lisonjeia a si mesmo de que intimamente reverencia sua lei, embora o único estímulo que experimenta seja o medo da punição.

A insinceridade é mera falta de exclupulosidade, isto é, de pureza que professamos ante o nosso juiz anterior, que é concebido como uma outra pessoa quando a esclupulosidade é tomada com absoluto rigor; então, se alguém, a partir do amor próprio, toma um desejo pela ação porque tem um fim realmente benéfico em mente, sua mentira externa, embora seja efetivamente contrária ao seu dever pra consigo mesmo, ganha o nome de fraqueza, como quando o desejo de um amante de encontrar apenas boas qualidades na sua amada o deixa cego para os óbvios defeitos dela. Mas tal insinceridade em suas declarações, que um ser humano perpetua sobre si mesmo, ainda merece a mais severa censura, uma vez que provem de mácula tão objeta (a falsidade, que parece estar arraigada na própria natureza humana) que o mal da inveracidade[2] se dissemina em suas relações com outros seres humanos também, posto que o mais elevado princípio da veracidade foi violado.

Observação

É de se notar que a Bíblia situa o primeiro crime, através do qual o mal ingressou no mundo, não a partir do fratricídio (de Caim) mas a partir da primeira mentira (pois até mesmo a natureza ser ergue contra o fratricídio) e classifica o autor de todo o mal como um mentiroso desde o início e como o pai das mentiras. Entretanto, a razão pode atribuir nenhum outro fundamento à propensão humana para a hiprocrisia (sprit fourbe), embora essa propensão deva ter estado presente antes da mentira, pois um ato de liberdade não pode (como um efeito natural) ser deduzido e explicado de acordo com a lei natural da conexão dos seus efeitos com suas causas, todas as quais são aparências.

Questões casuísticas

Pode uma inverdade por mera delicadeza (por exemplo “teu obediente servo” no fim de uma carta) ser considerada uma mentira? Ninguém é enganado por isso. Um autor pergunta a um de seus leitores: “O que achou de minha obra?” Poderia parecer meramente que se dar uma resposta gracejando quanto a improbidade de uma tal pergunta. Mas quem tem seu dito espirituoso sempre pronto? O autor considerará a menor hesitação para responder, um insulto. Pode, então, alguém dizer o que dele se espera?

Se digo alguma coisa não verdadeira em assunto mais sérios, relacionadas com o que é meu ou teu, terei que responder por todas as conseqüências que poderia ter? Por exemplo, um dono de casa ordena ao seu criado que diga “ele não está em casa”, se um certo indivíduo perguntar por ele. O criado assim procede e, como resultado seu senhor sai furtivamente de casa e comete um grave crime que, de outra maneira, teria sido impedido pelo policial enviado para prendê-lo. Quem (de acordo com princípios éticos) é culpado neste caso? Certamente também o criado, que violou o dever para consigo mesmo por meio da sua mentira, cujos resultados sua própria consciência lhes imputa.

Kant, Immanuel, 1724-1804

A metafísica dos costumes / Immanuel Kant / tradução textos adicionais e notas Edson Bini / Bauru, SP : EDIPRO, 2003 (Série Clássicos Edipro)

Título Original: Die Metaphysik der Sitten

Esta tradução foi baseada na edição alemã de 1977, da Suhrkamp Verlag (que corresponde à edição de 1956 de Insel-Verlag, Wiesbaden). Estas edições, por sua vez, se reportam diretamente às edições de 1797 e 1798 (para a Doutrina do Direito) e exclusivamente à edição original de 1797 (para a Doutrina da Virtude).



[1] Kan cita Salustio (Guerra contra Catilina): ter uma coisa calada no coração e uma outra pronta na lingua. (n.t.)

[2] A idéia é a mesma de falsidade, mentira, mas Kant utiliza o termo negativo. (unwahrhafpigkeit). (n.t.)